quinta-feira, 4 de março de 2010

Dia da mulher

A CONDIÇÃO FEMININA EM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS (1680-1822)

Maria Aparecida Papali, Maria José Acedo del Olmo e Valéria Zanetti1


“Acreditamos que não interessa ao historiador fazer a história das mulheres em termos de erros ou de acertos sobre o seu passado, contar a saga de heroínas ou mártires, o que seria de um terrível anacronismo. Sua função maior deve ser a de enfocá-la através da submissão, da negociação, das tensões e das contradições que se estabeleceram, em diferentes épocas, entre elas e seu tempo; entre elas e a sociedade nas quais estavam inseridas”2


Estudos históricos recentes têm cada vez mais abordado a questão do gênero feminino como importante viés historiográfico na busca pela reconstrução de nosso passado, a partir da atuação de sujeitos anônimos e comuns. Na história do Brasil Colonial, a participação da mulher não pode ser negligenciada. Tanto a mulher de elite, como a mulher pobre livre ou a mulher escrava dos séculos XVII, XVIII e XIX, vêm sendo um valioso objeto de investigação histórica, dada a contribuição desses agentes na formação daquelas sociedades repletas de contradições.

Sabe-se que no Brasil Colônia, o papel relegado às mulheres, era, via de regra, o da submissão ao mundo dos homens. Papel nem sempre respeitado, mas sem dúvida idealizado pela elite hegemônica da época. Ambiente misógino, o mundo colonial congregava mulheres de vários matizes; brancas, negras ou pardas, livres ou escravas compunham um cenário nem sempre favorável a esses sujeitos históricos. Mulheres que muitas vezes tornavam-se chefes de família, à frente de pequenos negócios ou na administração de prósperas fazendas ou mulheres reclusas e sofridas, vítimas da violência e da dominação masculina.

Nos documentos pesquisados sobre a cidade de São José dos Campos, a Vila de São José do Parayba dos tempos coloniais, foi possível identificar um perfil feminino timidamente esboçado. A evidência da existência dessas mulheres na documentação histórica da cidade abre possibilidades para a recuperação de experiências de setores sociais excluídos ou pouco contemplados pela historiografia da região.

Ao nos depararmos com as primeiras fontes sobre a formação de São José dos Campos, fomos atraídas pela história das mulheres que habitavam o modesto espaço joseense dos idos coloniais. Sua presença se dá, sobretudo, em razão de seu papel fundamental para a sobrevivência do local, constituindo-se presença marcante na economia e na organização da comunidade.

Provendo muitas vezes o próprio sustento e o de sua família, essas mulheres mostravam-se dispostas a enfrentar os infortúnios, buscando estratégias cotidianas para tentar sobreviver num mundo sem grandes alternativas. Uma coisa é certa, a trajetória de vida dessas mulheres mostra-nos um percurso de luta permanente pela sobrevivência.


Cotidiano

Numa documentação de 1767, que relaciona as pessoas e moradores da vila trazendo nomes e número de dependentes, é possível termos uma noção da composição do povoado3. Deparamo-nos com um número considerável de mulheres viúvas que, na sua maioria, exerciam o papel de fiandeiras e possuíam, geralmente, uma família numerosa composta de dependentes de pouca idade. Totalmente miseráveis, muitas dessas mulheres sustentavam seus filhos com a arte de tecer.

Nos limites da Vila de São José do Parayba existiam 187 fogos. A maioria desses fogos, 103 no total, estavam localizados no perímetro central, mais precisamente nos arredores da matriz. Nesses registros, aparecem as viúvas com idade acima de 60 anos e que nada possuíam, além dos míseros rendimentos adquiridos com o trabalho de fiar e dos seus pequenos sítios, que lhes obrigavam a pagar pesados foros de suas moradas ao diretor da vila.4 Segundo consta no documento, esse dinheiro servia para os consertos da Igreja.5 Apesar da obrigação do imposto sobre o uso da terra, o dirigente da vila deixa claro que “um vintém que se lhes tire lhes faz, pela pobreza em que estão, muita falta”.6


Mulheres

O contexto histórico sugere que a viuvez dessas mulheres pode ser explicada, em parte, pelo falecimento de seus maridos nos inúmeros conflitos internos, guerras, rebeliões e motins que sacudiram grande parte do território brasileiro à época da colônia. Na grande maioria desses episódios encontravam-se presentes representantes dos segmentos mais empobrecidos da sociedade, entre eles escravos e homens pobres livres.7

No inventário da Vila de São José do Parayba de 1766, aparecem os trastes em depósito pertencentes aos índios: dois fornos de cobre de torrar farinha, um tacho grande em bom uso e outro mais usado pequeno, e um alambique de destilar aguardente, duas serras com que se fabricava tabuados para a mesma povoação, dois lençóis velhos, quatro "envergalhões" velhos, uma colcha de algodão, uma balança de pesar algodão e seus pesos, como também algumas miudezas de pratos, tudo comprado com o dinheiro dos índios.

Sobre o estado de conservação das moradas da vila não temos notícias, mas a cadeia da Vila de São José se encontrava neste mesmo ano em péssimo estado, segundo lamentos do administrador ao governador geral. Comenta o diretor da vila que havia dois anos, a cadeia tinha sido arrombada e as grades estavam comidas pelo tempo. O alçapão, onde se achava a cadeia das mulheres, não tinha fechadura, porque tentou-se tirar de lá uma mulher que se encontrava presa, utilizando-se de escada encostada a uma das janelas da sala livre. Estas janelas também não tinham fechos nem grades. Em um documento de 1767, encontramos o nome da presa que havia fugido da cadeia da Vila de São José. Tratava-se de uma mulata de nome Clara Cardozo, com cinco filhos.

Além das dificuldades de sobrevivência, os índios viviam em estado de alerta. Por serem mão-de-obra cobiçada na colônia, eles eram constantemente vítimas de aliciamento de bandeirantes, ansiosos pela sua escravização, suas mulheres despertavam paixões e desejos libidinosos entre os homens brancos. Em 1767, o dirigente da Vila de São José anunciou ao Presidente da Província que uma mulher com filho de peito havia sido seduzida por um sargento. Em 1774, outro documento anuncia o roubo cometido pelo mesmo sargento, Domingos de Góis Raposo. O sargento roubou a casa e a mulher Rosa da Cunha, casada, com uma filha de peito chamada Perpétua que estavam, no momento, sozinhas porque o marido da mulher estava ausente “tratando de sua vida”.8


Índia

Cruzando as fontes, encontramos o registro da Rosa da Cunha, de 25 anos, casada com Ignácio Vieira de Souza, de 32 anos. Este casal tinha, além da Perpétua, de 7 meses, outros 5 filhos, de idade que iam dos 2 a 10 anos. Tinham em seu sítio localizado no Bairro de Buquira Abayxo e Parayba, 5 cabeças de vaca e 6 porcos.9

Além dos roubos registrados, tem-se notícia da exploração sexual dos povoadores com as índias. Num documento sem data, mas provavelmente testemunho dos anos de 1770, os índios da aldeia de São José se queixam das indolências do diretor que, além das diversas imoralidades, vivia “com uma rapariga da mesma aldeia por nome Laureana de porta adentro vivendo”10. Ou seja, o diretor estava amancebado com uma índia. Os índios, obrigados aceitar as imposições e arbitrariedades do diretor se revoltam; acusam o mesmo diretor de intimidar, com prisões, às mulheres que não se rendiam ao seu assédio, “deflorando donzelhas que, com medo do castigo, não tem outro remédio senão entregarem-se”.11

Além disso, relatam os índios que o diretor “deu umas pancadas em uma administrada (índia) que veio de novo para a aldeia e a fez meios por esta se lhe não querer entregar para o pecado. Deu outras pancadas em outra índia por nome Laureana (...) tudo por andar como louco armado vigiando suas concubinas. Tratou a uma índia por nome Leonor” para que “confessasse, se trataria com alguém. Por esta se lhe não querer entregar, fez trabalhar a gente sem lhes dar de comer e por fracos não podem trabalhar e outras muitas e muitas (coisas).”12

Trabalhadora, valente e corajosa, mas também assediada, desrespeitada e violentamente espancada; marcas presentes e destino comum de muitas mulheres que habitaram a Vila de São José do Parayba nos idos coloniais. Nossas avós joseenses que tão arduamente plantaram as primeiras sementes de nossa terra.

Notas:

______________________

1 Professoras e Pesquisadoras da UNIVAP, integrantes do Projeto Pró-Memória.

2 PRIORE, Mary Del “História das Mulheres: as vozes do silêncio” in: FREITAS, Marcos Cezar (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998, pág. 235.

3 Documentos microfilmados do século XVIII. Arquivo Público de São José dos Campos.

4 Documento microfilmado. 15 de janeiro de 1766. Arquivo Histórico Municipal de SJC.

5 Idem.

6 Idem.

7 Várias e sangrentas foram as revoltas do Brasil Colônia, entre elas a Guerra dos Emboabas em 1708, cujos protagonistas situavam-se entre a Capitania de São Paulo e de Minas Gerais. Ver, entre outros: VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

8 Manuscrito microfilmado de 16 de novembro de 1774. Arquivo Histórico Municipal de SJCampos.

9 Maços de população. Manuscritos microfilmados. Bairro de Rio de Ruquira Abayxo e Parayba pertencente a Vila de S. Jozé. Arquivo Público Municipal. Fogo n. 35.

10 Manuscrito microfilmado sem data. Arquivo Histórico Municipal de SJCampos.

11 Idem.

12 Idem.

Bibliografia

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995.

DIAS, Maria Odila da Silva.Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2ª Ed. Rev. São Paulo, Brasiliense, 1995.

FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

FREITAS, Marcos Cezar de. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998.

GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteção e Obediência: criadas e seus patrões no Rio de Janeiro (1860-1910). São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

PAPALI, Maria Aparecida C. Ribeiro. Escravos, libertos e órfãos: a construção da liberdade em Taubaté (1871-1895). S.P: Annablume. FAPESP, 2003.

SAINT-HILAIRE, Auguste de . Viagem à Província de São Paulo. São Paulo: Livraria Martins,1989.

PRIORE, Mary Del . A mulher na História do Brasil. São Paulo: Contexto, 1992.

TELES, Mª Amélia de Almeida. Breve História do feminismo no Brasil. São Paulo: Brasiliense,1993.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

ZANETTI, Valéria . Calabouço urbano : Escravos e libertos em Porto Alegre (1840 – 1860) . Passo Fundo: UPF,2002.

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